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sobre os delírios me deito.....a cama desalinhada me enruga... acordo em seguida.... num pulo percebo que delirar é estar sóbria e ser sóbria é estar atenta aos canais pro delirio do amor que tem no mundo

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não há nada de errado com o verão, só o outono que parece apressado

há somente um enfeite nos olhos...o olhar

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domingo, 4 de abril de 2010

A mansão do quarto amarelo ou como existir

Sim...essa cor é leve, serve nas paredes do cômodo vazio, combinam nele.
Assim vagou o meu primeiro quarto na mansão recessiva.
Comecei já feliz, a esperar, riso amarelo, certa irritação, no quarto principal.
(foi delicado o transe)
O alinhamento do lençol nunca fora belo, mas antes me servia acampar, era parte emocionada, investigação de amor, que se instaurava no cômodo. Perfume cômodo, de dormir encaixada no cheiro.
Senso excedido no espaço, braços maiores que a volta dos abraços, sufoco!
Fiz a mudança para o quarto amarelo nesse tempo de saudade e fui feliz.
A vaguidão da casa era apertada , os vãos me perfuravam lentamente... até faltar espaço.
Comecei a flutuar insone no que poderia ser o que parecia ser.
O quarto amarelo havia ofuscado os outros quartos. Admirável amarelo, cansativo, de brilho e sede.
Nas noites não ousava mexer na maçaneta, apenas passava pela porta e sorria pra solidão do quarto, que deliciosamente se parecia comigo. Ficava de certo modo tentada a espiar pela fechadura:

Fundo solitário
de amor sob medida
paredes raladas e incertas
O amor me vela
enquanto outro amor me leva
Confundir relevo em amor me eleva.

A poeira dos corredores era estática, a ventilação preguiçosa.
O sol batia nos turnos de sono, as esquinas da casa se tornavam frias quando anoitecia , o sol batia noturno.
Respirar ali era uma questão de cálculo, respirar errado seria tragar o trânsito convulsivo da casa. O lugar cheio de espaços vazios se agitava, a ponto de provocar labirintite em qualquer afeto que pudesse brotar ou quisesse.
O mais curioso era saber.

Esse espaço de mobília vivida (no passado vívida) estava inundado por um silêncio abandonado,sepulcral. Precisava mudar dali , de águas , de sóis.
A morte daqueles espaços aumentava a cada madrugada.

E o novo flertava nas campainhas.
O medo fingia não se incomodar com as visitas em blim blom.
Tinha uns dias em que as ruas pareciam mais harmônicas que os cômodos da mansão, era o vazio que desarranjava as noites e a luminosidade dos afetos.
Andava na calçada pronta pra encontrar um cão desprotegido, com olhos de amor, olhos que ensinassem, predispostos a entrar na minha vida-mansão-quebra-cabeça-adulto.
O quebra-cabeça-labirinto estava quase pronto, as peças faltantes estavam numa das gavetas da cômoda.
A comodidade de manter e inaugurar me inundava, talvez eu não quisesse desvendar o labirinto.
Mesmo sabendo das pistas engavetadas, optei pelo afeto passageiro dum cão abandonado com olhos de amor, e abandonei o quebra-cabeça-labirinto.

Os delírios principiavam a noite, na hora do repouso. Imperfeitos feixes de luz clareavam uma rejeição quase gentil, reconhecia.
Pela fechadura ,desejava o quarto amarelo, se encaixava na minha fase, mas parecia não estar totalmente pronto pra me receber.

Me repartia sempre em pontas de preocupação...Se na decoração teria abajour ou luminária, se a cama seria no chão ou uma cama nova, se seriam quadros ou colagens, fotos ou poemas, chaves ou trincos, amor ou rejeição...
As outras pontas ficavam presas nos afazeres conjugais, faxina no quarto principal, frutas e cereais, jantar fora, perfume ou hidratante de baunilha, incensos ou remédios pra esquecer o quarto amarelo , enfim política de felicidade prometida.
Alguns feixes apareciam em momentos inoportunos, chegava a pensar no que estaria acontecendo no quarto amarelo.
Adiante entendi o obcecado desejo de entrar no quarto.
Dias seguidos de visitas pela fechadura, encorajavam meu corpo a mover-se em direção a parte interna do abandonado e sólido cômodo interessante.
Antes de abrir a porta , limpei os detalhes do quarto principal, mudei as gavetas, troquei o lençol, dobrei os papeis passados numa ordem cronológica o os guardei.
Pronto....sozinha na mansão, tirei os sapatos, o sutiã e virei a maçaneta confiante.Entrei e foi rápido o reflexo de fechar a porta atrás.
Aquilo começou a fazer sentido ali, no primeiro minuto...a respiração se acalmou, as paredes pareciam mais flexíveis e o oxigênio mais nítido.
Era uma espécie de quarto com molde pra solidão acompanhada. Aquilo tanto me seduziu quanto assombrou.
No lugar mais solitário da mansão eu me enquadrava, maquiada, porém desnuda, rosto suado, pó compacto a escorrer pelo queixo. Flertei alegremente com a solidão do quarto, passado algumas horas, ria sozinha e cantarolava de olhos fechados, despreocupada com a chuva forte, que poderia estar molhando meu lençol engomado no quarto ao lado. Pois sim, a chuva se inclinava como que para encharcar a cama.
Chuva forte não significava tempestade, estava chovendo com céu de sol, a manobra da água era leve. Chovia no quarto principal gotículas diluídas no vento, canção d'água.
A canção silenciava, tinha melodrama no tom, mas não parecia canção de amor agora.
Eram tons descortinados, soavam como uma claridade primeira do dia, nada desconcertante ou virtuoso. Notas deflorantes apenas, canção escorregadia , perfumada, entrou nas minhas vagas com sombra, provávelmente para não mais sair.
Engraçado a melhor vaga ser a mais livre. Parte da minha mudança da mansão devia-se às vagas mal acostumadas e presas, as de ocupação posse-zelo-apego. Aquele tempo cultivava medo e inverdades.
A música e a vaga se encontraram num enlace, e finalmente a vaga virgem, aceitou a canção e sua inevitabilidade.
Tardes cativantes se esparramavam na mansão apertada.
Enquanto isso o que restava fora da casa era um domingo operado , de solaço e vozes de crianças.
Na casa o pensamento se irritava fácil, gritava sala a fora, atirava arrependimento e discórdia contra as paredes encardidas:

Amor tem prazo de validade
se vencido é um rasgado no peito
avança nos olhos do apaixonado
risca a prata dos bons tratos quebra a louça emocionada

Era a consequência do desejo obcecado de entrar no quarto

-Tens coragem de amar o que te bate no meio da cara e te diz que está de amor ocupado?
Seguras teu amor por um beijo?
Se veste pra outro enquanto este te despe?
Se sim é porque mereces
Mereces apanhar da voz do outro que te diz que tudo quer
que te põe no quarto de empregada e te chama quando der
Que te diz segredo fresco e te faz sentar pra ouvir
e que te fala apaixonado sobre o simples novo a encantar.

Nessa hora o afeto se cala no quarto amarelo e as crianças na rua agora choram.
Hora de ir embora da tarde risonha, deixar as bolinhas do pula-pula onde estão, hora de recolher os brinquedos!
Rapidamente percebi o oxigênio adulterado no quarto amarelo. Era gás agora, as paredes flexíveis me ludibriaram a noção....do espaço, do ar, de mim.
Com olhos mais lentos e molhados entrei pela última vez no quarto. As minhas malas estavam bocejando à essa altura.
Assim que abri a porta, vi a queda duma partícula, das muitas, de vidro do lustre. Um detalhe cuidadosamente encaixado se desprendeu do antigo lustre, luxuosamente decadente.
O aspecto empoeirado mudava a incidência da luz, uma poeira seca, cinza.
Pois bem, parecia que eu acabara de sacudir o teto do quarto, com a batida da porta, ao entrar.
O leito estava ocupado, com trajes femininos, roupas de bebê, amor de mãe, e ao lado no chão instrumentos musicais, discos de lindas canções, poeira, poeira, poeira.
Por que só agora via o quarto como ele realmente era/estava?
A expectativa que urgia em mudar pro quarto se embotou, voltou a ser apenas uma curiosa inquietação, de olhar a luz do quarto como quem cheira um girassol, mesmo sabendo que ele não tem cheiro e prosopopéicamente nem quer ter.

Fui rendida ao fracasso de sonhar noutro quarto...
Isso de retiro, de sair de si sem deixar mapa é arriscado, pode haver troca de danos, de "danem-se". Quando a gente se procura, não procura mais ninguém, poderia até achar se procurasse, mas seria barulhento demais procurar , seria sem saber.
A procura sem desde o quê e até quando, é sem saber. A procura é quase sempre sem saber.

Dizem que existe e mesmo esse tal sexto sentido de mulher.
E não é numa noite bem desmedida reconheci que a agulha da procura estaria ali, naquela almofada urbana que é a rua solta (como que macia), pronta pra entrar no rabo de quem sentasse nela, na rua.
Sentei a noite no meu humor e saí de roupa feliz, bem certeira no meu engano almofadado.
Dado momento me esqueci do que pressentia, não lembrava se era um flashe ou uma memória mofada ou uma intuição fadada a inevitabilidade, mais uma vez.
Um flashe seguido dum balde frio, talvez fosse esse o possível furo da noite.
Lá no lugar pressentido um gosto de idade, um sabor de controle e mais alguns disfarces apaixonados se estreitando na mão dupla da escadaria.

As medidas se soltaram do medidor, para que a verdade viesse sem controle, escada abaixo, ao meu encontro, na nudez da revelação.
A rua solta tinha mais espaço que o quarto amarelo, e assim repito, parecia mais real.
Entendia as direções, mas não era capaz de escolher a reta, andavas nas listras e flechas da rua, pernoitava até encontrar uma linha reta acesa.
Eu não tinha escolha, eram apenas dois fluxos: o de ir e o de voltar. Não restava opção de cruzar o meio e ficar no limite ida-volta.
Necessitava voltar, mesmo que para a mansão fosse de vez.
Assim que abri a porta do saguão sala a luz estalou ao acender queimou-se.
Meus bons modos riam-se com vontade de morrer.
O quarto amarelo sim, esticava minhas vontades até arrebentar, mesmo estando ocupado me chamava, me estimava. E não era mais mudar, era ter acesso ao quarto naquele estado de emancipação o que me interessava. De nada valia ser estimada, necessitava paredes macias, que recebessem a minha testa quando fosse essa a batida.

Além do quarto amarelo haviam outras formas de solitude, outro feixes de alegria, mas eu simplesmente não os via, e imersa no corredor lotado de caixas de mudança, resolvi abnegar aquela porta envelhecida, cheia de abismos e controles. Sendo esse o início do silêncio entre mim e o quarto amarelo.

A mudança ja havia se aplicado...Quase grata me estirei no corredor de caixas destinadas a um novo lugar:

A impressão de amor é feito o lava-jato que lava seu carro ha tempos
Fica limpo
mas não dura muito
mesmo sendo antigo o lugar de sempre
A impressão de amor é efeito de limpeza
mesmo quando é sabido que a sujeira de dentro não sai.

O efeito que o quarto amarelo produzira no resto da mansão tornou-a mais fria e rígida. Até as quinas, que me eram desafiadoras, esvaziaram-se, foram tragadas pro quarto, de ida sem volta, sumiram. Nas outras quinas, amarelas tristes, restaram noites inteiras, nunca vividas, vistas aprofundadas no nada e mais algumas doses inumeráveis de apreço, doses bagunçadas na insondável paixão infinita por quartos amarelos que não existem.... mansão adentro, alma afora, até hoje.